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Bebê Reborn: bizarrice digital ou sintoma de uma sociedade emocionalmente exausta? [Estudo]

  • Foto do escritor: Freitas Netto
    Freitas Netto
  • 19 de mai.
  • 7 min de leitura


Nos últimos dias, as redes sociais foram tomadas por uma sequência de vídeos curiosos (e para muitos, perturbadores) de adultos simulando rotinas de cuidado com bonecas hiper-realistas, os chamados bebês reborn.

Cenas de banho, mamadeira, troca de fraldas e até mesmo partos encenados viralizaram no TikTok com uma intensidade surpreendente. O que poderia facilmente ser enquadrado como uma simples excentricidade digital ou mais uma bizarrice efêmera do algoritmo revela, na verdade, sintomas profundos de um tempo onde afeto, identidade e consumo estão em constante reinvenção.

O estudo “Bebê Reborn: cuidado performático e o desejo de brincar na vida adulta”, desenvolvido pelo time de Creative Data da Artplan, em maio de 2025, mergulha com precisão nesse fenômeno. E nos convida a refletir: será que estamos mesmo falando de bonecas? Ou estamos falando de algo mais profundo do ser humano? Ou seja, a forma como temos negociado, encenado e até mesmo comprado os nossos afetos?

Estamos diante de uma trend que estourou em números: são mais de 86 milhões de visualizações e 344 mil publicações no Tiktok, além de 160 mil menções nas redes sobre bebês reborn, segundo o levantamento da pesquisa.

Mas também, a trend escancarou um desconforto coletivo difícil de nomear, mas fácil de sentir. Ela não se sustenta apenas pela sua curiosidade visual, mas pelo fato de tocar, ainda que de forma simbólica, em temas estruturais da vida adulta contemporânea: a solidão afetiva, a performatização do cuidado, a nostalgia da infância e a necessidade de controle emocional em um mundo instável.

Como já dizia Donald Winnicott, um dos nomes mais influentes da psicanálise do século XX, o brincar é um espaço potencial, uma zona intermediária entre realidade e fantasia, onde a criança elabora sentimentos, medos e angústias. No universo adulto, esse espaço raramente é preservado. Somos ensinados a reprimir o lúdico, a endurecer afetos, a lidar com perdas de forma racional. Mas o desejo simbólico permanece.

Cuidar de um bebê reborn, nesse sentido, pode ser um gesto de elaboração emocional profunda. Uma forma de lidar com a ausência, de filhos que não vieram, de vínculos que falharam, de relações que nunca amadureceram. A boneca não responde, não confronta, não abandona. E talvez seja justamente isso que ofereça alívio a quem cuida: a segurança emocional de uma relação sem falhas.

Esse tipo de vínculo também precisa ser entendido à luz do conceito de "objeto transicional", também de Winnicott. O objeto transicional, como o ursinho de pelúcia da infância, é aquilo que conforta enquanto o sujeito se adapta à ausência da presença plena do outro. 

Por que os reborn viralizam?

Um dos aspectos mais instigantes dessa trend está na reação ambígua que ela desperta: encanto e incômodo ao mesmo tempo. O olhar curioso que observa o vídeo é o mesmo que desvia diante da estranheza. E para entender esse desconforto, a pesquisa destaca um conceito da robótica e da psicologia cognitiva que vem sendo cada vez mais útil para interpretar fenômenos da cultura contemporânea: o Vale da Estranheza (Uncanny Valley).

Formulada por Masahiro Mori nos anos 1970, a teoria aponta que quanto mais um objeto se assemelha a um ser humano, mais empatia ele tende a gerar, até um certo ponto. Quando essa semelhança atinge um nível quase perfeito, mas ainda falha em reproduzir a vida de forma convincente, o cérebro humano entra em conflito. Surge o estranhamento. O afeto dá lugar à desconfiança. É uma falha na simulação que revela a ausência: não é vivo, mas também não parece totalmente inanimado.

É exatamente esse limbo emocional que os bebês reborn ocupam. Eles não são brinquedos comuns, são hiper-realistas. Simulam textura de pele, respiração, até peso de recém-nascido. O espectador reconhece ali traços humanos, mas o corpo não responde, não pulsa, não reage. Isso desestabiliza. E o mais interessante é que, em vez de afastar, essa tensão atrai. O incômodo vira clique, que vira viral.

Mais do que representar apenas uma sensação desconfortável, o Vale da Estranheza nesse caso opera como uma metáfora de algo maior: o modo como nos relacionamos com o simbólico na era digital.

Vivemos em um tempo em que os limites entre real e simulado estão constantemente borrados. Seguimos influencers que não conhecemos, nos emocionamos com vídeos de inteligência artificial, projetamos afeto em avatares. O bebê reborn é só mais um capítulo dessa relação cada vez mais sofisticada (e perturbadora) entre presença física e presença emocional.

Paradoxalmente, cuidar do que não vive pode ser uma forma legítima de expressar afeto real. O que nos conecta emocionalmente não é apenas a existência biológica, mas a projeção simbólica que fazemos. E talvez seja aí que a trend toque um ponto sensível do nosso tempo.

Quando o cuidado vira conteúdo (e mercado)

No universo dos bebês reborn, a linha entre afeto e consumo é ativada, roteirizada e monetizada. O que se apresenta como um gesto íntimo de cuidado passa rapidamente a se configurar como narrativa performática para as redes sociais. A boneca, que antes poderia ser um objeto de vínculo simbólico, vira personagem central de um roteiro de afeto dramatizado, encenado para engajar.

Vídeos de adultos simulando partos, trocas de fralda com trilha sonora delicada, berços decorados com perfeição e mini enxovais personalizados invadem os feeds com uma estética cuidadosamente construída. Nada ali é espontâneo… tudo é minuciosamente dirigido para emocionar, entreter e acumular visualizações.

Mas esse fenômeno não é exclusivo das bonecas reborn. Ele é a continuação de um movimento maior de espetacularização do cuidado que já vinha se consolidando nas redes nos últimos anos. A maternidade virou conteúdo. A paternidade virou influência. O chá revelação virou evento cinematográfico. A gestação virou uma jornada patrocinada.

No universo reborn, isso se radicaliza. A própria ideia de cuidado se desloca: de uma prática relacional para uma performance visual. O afeto é representado, editado, embalada em linguagem TikTok, e entregue para o público como entretenimento emocional. O laço afetivo se torna narrativa e a narrativa, produto.

Mais do que uma brincadeira, cuidar de bonecas reborn movimenta uma cadeia econômica real, com produtos customizados, canais de venda, parcerias com marcas, microinfluenciadores especializados e até “especialistas em reborn” para auxiliar iniciantes. 

Em alguns casos, os gastos com acessórios se aproximam do custo de um bebê de verdade. Isso acontece porque o consumo não gira em torno do objeto em si, mas do estilo de vida simbólico que ele representa.

E é nesse ponto que o universo reborn se conecta diretamente com o fenômeno dos kidults, conceito que a pesquisa traz de adultos que consomem objetos tradicionalmente associados à infância como forma de expressão identitária e alívio emocional.

Segundo a Euromonitor, 1 em cada 4 brinquedos vendidos globalmente já é destinado a adultos. Esse número revela que não se trata de infantilização, mas de uma reconfiguração do consumo afetivo como ritual contemporâneo de pertencimento e construção de identidade.

A lógica é clara: o cuidado com os reborn não é apenas uma manifestação individual de afeto ou nostalgia, mas uma nova economia emocional. E como toda economia emergente, ela traz consigo oportunidades para o mercado, mas também perguntas éticas urgentes: até que ponto transformar o afeto em conteúdo não corrói a própria experiência do afeto? Quando o laço encenado começa a ocupar o lugar do vínculo real?

Na era da atenção como capital, até o carinho precisa ser instagramável. 

Brincadeira que tem gênero

Por que brincar de boneca na vida adulta ainda provoca tanto ruído, enquanto hobbies masculinos como videogames, colecionar action figures ou jogos de tabuleiro são amplamente aceitos?

De acordo com a levantamento, a resposta não está no objeto, mas no olhar social que recai sobre ele. A nossa cultura associa o universo do cuidado ao feminino desde a infância. Brincar de boneca nunca foi uma escolha neutra ou meramente lúdica: sempre esteve embutido de uma função social de preparação simbólica para o papel da mulher na sociedade. É o cuidado ensaiado antes mesmo da linguagem madura. Um script que se repete.

Enquanto os hobbies ligados ao masculino ganham status de entretenimento ou cultura geek, os do feminino frequentemente são reduzidos a futilidade, regressão ou “fragilidade emocional”. A trend dos bebês reborn escancara essa assimetria. O que para uns é expressão cultural, para outras é motivo de julgamento ou, no mínimo, de estranhamento.

E o mais curioso: à medida que homens começaram a se interessar pelo tema, o olhar sobre a trend também se transformou. Segundo o estudo da Artplan, 32,1% da audiência atual dos vídeos sobre bebês reborn já é masculina, e o aumento de interesse coincide com o momento em que o tema começou a ser debatido com mais seriedade. Isso reforça o que já sabemos na prática: a legitimação social de certos comportamentos ainda depende do gênero de quem os executa.

A pergunta que fica não é se adultos devem ou não brincar. Mas quem pode brincar sem ser julgado? E o que essa liberdade revela  sobre os papéis que seguimos representando?

E o que as marcas têm a ver com isso?

Estudos da Kantar indicam que marcas percebidas como divertidas e lúdicas têm 24 pontos percentuais a mais de potencial para gerar demanda futura. Mas o que está por trás desse dado não é só o prazer do entretenimento, mas a capacidade de criar microexperiências de leveza em um mundo que constantemente sobrecarrega.

Em tempos de burnout coletivo, excesso de informação e vínculos instáveis, o lúdico vira antídoto. A tendência dos bebês reborn é só a superfície visível de uma mudança mais profunda no comportamento de consumo: não basta mais vender produtos, é preciso vender segurança emocional, sensação de pertencimento e pausas simbólicas.

Nesse contexto, o papel da marca não é ser protagonista, mas sim facilitadora. Marcas que oferecem suportes simbólicos, cenários, objetos e narrativas que permitem que os consumidores expressem suas emoções, construam mundos próprios e compartilhem essas vivências nas redes, ocupam um lugar de privilégio no imaginário social.

Inspirado no estudo "Bebê Reborn: cuidado performático e o desejo de brincar na vida adulta" (mai/25). Trabalho incrível da Carolina Amorim e o time de Creative Data da Artplan.



Antônio Netto

Head de Planejamento Estratégico Especialista em Branding e Comportamento do Consumidor.

Vencedor do Prêmio Amigos do Mercado 2024 – Planejamento Publicitário

Host do podcast Papo Bizz 🎙️

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