Você já percebeu um fenômeno bem peculiar e, ao mesmo tempo, perturbador: o surgimento das "crianças coach”, os mirins motivacionais.
Um fenômeno que pode soar muito estranho: crianças de 9, 10… 15, 16 anos discursando com a confiança de adultos experientes sobre aprendizados de vida, resiliência, “motivação para vencer” e até investimentos, como se fossem empresários experientes.
Não se trata de crianças influenciadoras comuns, que já são alvo de muitas discussões, mas em vídeos que circulam nas redes sociais, vemos meninos e meninas reproduzindo com precisão a linguagem motivacional dos coachs adultos.
Falam sobre “constância”, “disciplina” e até sobre “não desperdiçar o tempo de vida”, como se já tivessem passado por anos de altos e baixos que demandassem essa sabedoria.
Ivan Silvati, psicólogo e especialista em aprendizagem infantil e juvenil conta que essa tendência de “adultização” nas mídias digitais pode atrapalhar seu desenvolvimento.
“A exposição precoce das crianças a conteúdos e papéis que são de adultos interrompe o que eu chamo de processo natural de desenvolvimento”, destaca. “Essa interrupção pode levar ao desenvolvimento de um ‘falso self’, uma adaptação às expectativas externas, em que a criança começa a agir para agradar os outros, em vez de seguir seus próprios impulsos naturais”, completa o psicólogo.
Além do discurso motivacional, há também uma apropriação surpreendente do vocabulário neoliberal: falam de investimentos, do valor do trabalho árduo, empreendedorismo e até de meritocracia, aplicando lógicas de mercado a uma idade em que, em teoria, deveriam estar explorando o mundo com a liberdade própria da infância.
E que fique claro que, aqui, eu não estou levantando a questão se essas crianças ou jovens têm ou não a capacidade de vender ou gerar riqueza com a Internet, com viralização ou marketing digital. Até porque isso se desdobraria para um outro papo. O objetivo é analisar essa “adultificação” precoce.
Com expressões sérias e frases de efeito, parecem modelos reduzidos de gurus de desenvolvimento pessoal, aplicando fórmulas de sucesso que mal tiveram tempo de entender, em simulacros de podcasts, entrevistas e cortes para Internet.
“Quando a gente olha para esses coaches milins - e olha que eu já vi alguns vídeos aí com falas bem assustadoras de crianças invalidando a educação formal, dizendo que produzir riqueza é mais importante, que a escola é perda de tempo - o que a gente vê nesses casos são crianças reproduzindo falas de adultos que certamente estão por detrás das câmeras estimulando isso em troca de monetização. Só que aí as crianças são naturalmente criativas e deveriam se engajar em atividades que permitam a expressão daquele seu eu verdadeiro”, explica o Silvati.
Esse fenômeno, além de curioso, levanta questões sobre o que essas crianças realmente compreendem sobre o que estão dizendo e, mais ainda, sobre como as redes sociais moldam sua percepção de quem elas “deveriam” ser.
“Ao assumir papéis de influenciadores e coaches, as crianças começam a internalizar valores adultos, como produtividade e sucesso, que não são próprios da idade,” comenta Silvati.
Ao invés de discursos espontâneos ou experiências adequadas à idade, vemos crianças replicando o conteúdo adulto que consomem, se espelhando em uma visão de vida acelerada e cheia de pressões – tudo isso enquanto lidam com a exposição precoce ao mundo digital.
Essa mistura de maturidade performada com a falta de vivência para validar o que dizem provoca um estranhamento: será que estamos, sem perceber, incentivando uma geração a pular etapas essenciais de desenvolvimento?
“Isso gera uma ruptura na maturidade emocional e pode causar uma confusão entre o que é lúdico e o que é uma obrigação, tirando da criança a oportunidade de ser criança”, observa Ivan Silvati.
Qual a origem desse fenômeno mirim?
Com redes sociais cada vez mais dominantes, onde o conteúdo voltado ao público adulto predomina, crianças agora têm não só um palco, mas também um público para assistir a essa “adultificação.”
Hoje, as redes sociais monopolizam o tráfego digital e se tornaram a principal fonte de entretenimento e sociabilidade, inclusive das crianças e jovens.
O consumo de conteúdo no TikTok, Instagram e YouTube não é mais segmentado por faixa etária como deveria. Com isso, crianças e adolescentes são impactados por conteúdos que não foram criados para eles, mas que passam a ser seu grande referencial de aprendizado e inspiração.
Como resultado, vemos jovens adotando trejeitos e discursos que não fazem parte de sua realidade.
“A ausência de um ambiente online seguro e protegido direciona a criança para o campo de imitação dos adultos, seja no caso dos mini-coaches, influencers ou até em casos de sexualização precoce” alerta Silvati. “As crianças buscam reconhecimento e imitam o comportamento adulto, que é altamente valorizado nesses espaços digitais.”
Frases como "todo mundo tem as mesmas 24 horas que Elon Musk" ou "se exercitar e ler livros vai te destacar nesse mundo" se tornam comuns entre esses "mini influenciadores".
O conteúdo, muitas vezes sem propósito real, é manipulado por algoritmos que recompensam a repetição de padrões populares, gerando “crianças-adultizadas”, o que me parece quase um pequeno bug do sistema.
O risco psicológico para crianças e jovens
Em um trecho de recorte de vídeo no TikTok, um coach mirim diz: "Se você é homem e tem de 14 a 20 anos e depende dos próprios pais, cara, você é uma vergonha... Vejo muitos jovens, de 16, 17 anos, que dependem tanto financeiramente quanto emocionalmente dos próprios pais. Eu acho isso ridículo."
Quando elas agem para agradar os outros, acabam sujeitas a uma pressão constante por resultados e a uma cobrança excessiva para alcançar metas que muitas vezes são inatingíveis para a sua idade. Os riscos desse fenômeno para o futuro dessas crianças são profundos.
“Vale lembrar que o neoliberalismo tem estimulado cada vez mais essa exposição quando vende a ideia de que o valor pessoal tá atrelado ao sucesso, ao acúmulo de riqueza e a produtividade desde cedo”, destaca Silvati.
Essa postura pode levá-las a ciclos de frustração e decepção, minando sua autoestima e provocando um desgaste emocional precoce. Não apenas esses "coachs mirins" se colocam nesse papel, mas, ao exporem suas vidas e ideias nas redes, acabam influenciando outras crianças e adolescentes a se sentirem pressionados a alcançar uma suposta "independência financeira" ou "sucesso pessoal" desde muito cedo.
Essa cadeia perigosa cria um ideal distorcido do que é esperado para a infância e adolescência. “O resultado disso, pode sim ser o surgimento de dificuldades da criança em se reconhecer ou entender naquilo que é adequado ou não para a própria idade”, completa o psicólogo.
A perda dos espaços infantis e a insegurança digital
Há alguns bons anos, existiam espaços digitais pensados exclusivamente para o público infantil, como os jogos, sites de desenhos animados e canais específicos no Youtube. Esses ambientes permitiam que as crianças criassem suas próprias redes e interagissem com pares de forma mais espelhada.
Hoje, esses espaços praticamente desapareceram (ou perderam relevância), e as crianças estão mergulhadas em plataformas que não fazem distinção entre faixas etárias.
“O ecossistema que deveria proteger a criança não cumpre esse papel”, observa Silvati. “As famílias deixam de monitorar, as empresas de tecnologia buscam monetização a qualquer custo, e o estado falha em estabelecer diretrizes claras para proteger os mais jovens. No final, são as crianças que ficam desprotegidas e vulneráveis aos interesses de estranhos e padrões adultos que não correspondem às suas necessidades”.
Essa mudança na dinâmica digital também traz um aumento nos riscos. O acesso irrestrito a smartphones e a falta de moderação adequada nas redes sociais tornam as crianças mais vulneráveis a ataques, aliciamento e exposição inadequada.
Além disso, a privacidade, que antes era limitada pelo uso do computador familiar, agora está completamente nas mãos das crianças, dificultando a supervisão dos pais.
Embora a solução ideal pareça ser restringir o acesso das crianças às redes sociais, a realidade mostra que isso é difícil de ser implementado de forma eficaz, considerando o avanço da tecnologia e a integração dos dispositivos móveis no cotidiano.
Enquanto a internet continuar oferecendo um fluxo constante de recompensas rápidas e dopamina digital, as crianças se comportando como adultos nas redes sociais provavelmente continuarão a existir.
No final das contas, o fenômeno das "crianças coach" nos lembra da importância de reavaliar a relação das crianças com o ambiente digital e da necessidade urgente de criar espaços que as protejam e as deixem ser o que realmente são: crianças.
OBS.: as imagens e vozes das crianças/jovens dos vídeos foram alterados e usernames omitidos.
Por: Antônio Netto
Gerente de Planejamento, liderando estratégias de marketing para o varejo. Com vasta experiência, também sou Professor, mestrando em Administração, e consultor em marketing digital, focado em inovação e prática.
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